Alvo de críticas do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e de alguns parlamentares, a secretaria do Tribunal de Contas da União (TCU) criada para mediar acordos entre empresas e o governo vai analisar em 2024 processos que envolvem quase R$ 220 bilhões. Entre os principais casos estão negociações com operadoras de telecomunicações, com 14 concessionárias de rodovias e com o fundo de pensão dos funcionários do BNDES.
Idealizador da nova estrutura, o presidente do TCU, Bruno Dantas, inicia seu segundo ano à frente do órgão poucas semanas após mais uma disputa pela indicação para o Supremo Tribunal Federal. Para ele, a consolidação do instrumento de mediação vai dar segurança jurídica e celeridade aos investimentos previstos nos contratos de concessões, que foram paralisados, entre outros motivos, por problemas de planejamento.
Além de garantir o sucesso da área de consenso, o tribunal terá o desafio de fiscalizar a perseguição à meta de déficit fiscal zero, compromisso assumido pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Em entrevista ao Valor, Dantas previu um 2024 “muito mais desafiador” para a política fiscal.
“Quem decide a meta do primário é o governo na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), mas, uma vez definida a meta, o TCU observa o fluxo de receitas e despesas e observa a gestão fiscal para ver se aquela meta está sendo perseguida com todos os instrumentos que a Lei estabelece”, afirmou.
Também estão previstas para este ano duas sessões exclusivas para julgamento de processos envolvendo a gestão de Luciano Coutinho no BNDES. Os processos envolvem centenas de servidores do banco, que podem ser responsabilizados por irregularidades identificadas pelo TCU entre 2012 e 2015.
Dantas também fará parte do Conselho de Auditores das Nações Unidas (ONU). O Brasil está entre os três países eleitos pela Assembleia Geral para auditar as contas da organização. Ele será empossado em julho como o primeiro brasileiro com assento no conselho, responsável por fiscalizar o orçamento da ONU, de US$ 70 bilhões.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: A Secretaria de Consenso do TCU foi criada na sua presidência com o objetivo de destravar investimentos, mas acabou recebendo muitas críticas e até ameaças de CPI. O que saiu errado?
Bruno Dantas: Quando assumimos a presidência, nos deparamos com um quadro de grandes dificuldades no setor de infraestrutura. A pandemia havia causado um abalo em todos os grandes contratos de aeroportos, portos, rodovias e ferrovias. A isso se somaram problemas que vinham desde 2011, das rodadas de concessões que foram feitas, estimando um crescimento do país que não se concretizou. Então, nós tínhamos o problema de um desequilíbrio brutal dos contratos administrativos. Diante desse quadro, discutimos a busca de um modelo que trouxesse mais segurança jurídica e respeitasse o espaço de discricionariedade de escolhas do gestor público. Isso porque os anos Lava Jato foram terríveis para o gestor público. E quando um clima como esse se instala, é normal que os gestores, assustados, se recolham e deixem de decidir. O TCU, que tem um papel muito importante na análise da modelagem dos contratos, se tornou uma espécie de selo de qualidade dos projetos. Quando um investidor vai tomar financiamento para um projeto de infraestrutura no Brasil, ele quer saber se o TCU já olhou, se para em pé ou se vai correr o risco de entrar nisso e, daqui a dois anos, ter uma contestação. O que se pensou quando a Secretaria de Consenso foi idealizada é que o TCU senta à mesa, não como parte, mas como um mediador técnico, e observa os dados que estão chegando para negociação entre as empresas e o poder público. A homologação do TCU significa apenas uma promessa de que, dados aqueles termos do acordo, o tribunal não vai abrir um processo de controle externo para questionar aquelas bases contratuais, salvo se posteriormente se comprovar dolo ou fraude.
Valor: Mas o presidente da Câmara disse que o TCU estaria extrapolando suas funções.
Dantas: O primeiro ano de funcionamento de qualquer coisa que se propõe a mudar profundamente uma visão e uma cultura gera estranheza. Claro que há falha nossa, porque nós tínhamos que explicar essa governança interna e essa forma de funcionamento. Nesse “‘mea culpa” que fizemos, eu até pedi ao presidente Arthur Lira que chamasse uma reunião com os líderes partidários e eu iria com a equipe de auditores explicar o funcionamento. Porque, rigorosamente, se o TCU não sentasse à mesa com a agência reguladora, com o ministério, com concessionárias, com o setor privado, a solução seria caducidade da concessão, o que gera um trauma terrível. Quem conhece a jurisprudência brasileira sobre caducidade de concessões sabe que não é fácil. São litígios que vão para a Justiça e passam anos, às vezes décadas, por lá.
Valor: Essa nova secretaria já mediou acordos nos setores de energia e ferrovias. O que está na mesa para 2024?
Dantas: Há dois processos na área de telecomunicações, nos quais estamos discutindo algo em torno de R$ 100 bilhões. São os processos que discutem a mutação do sistema de concessão para autorização e têm uma fatura imensa que as teles cobram da Anatel com perdas que supostamente vão ter com a transformação do modelo. Mas tem também o passivo regulatório, as multas que foram aplicadas pela Anatel. Portanto, nós estamos falando aí, em números gerais, de R$ 100 bilhões somente no setor de telecomunicações.
Valor: R$ 100 bi em disputa?
Dantas: Em disputa e, quando tem disputa, não tem investimento, porque quem está brigando não faz investimentos para a ampliação da rede, para aperfeiçoamento. Temos uma das empresas que está nessa disputa, a Oi, que está em situação pré-falimentar. São situações muito complexas e, por serem muito complexas, não encontram soluções fáceis no direito administrativo. Precisa inovar de alguma forma, só que agências reguladoras e o ministério não inovam, com medo dos órgãos de controle. Veja que Secex Consenso tem esse papel, colocar na mesma mesa os atores, que vão testando as possibilidades. Acordo é um jogo de aproximação. Se alguém sair 100% satisfeito, não é um acordo, é a imposição de uma vontade.
Não há postulação que se possa fazer e eu estou muito feliz no Tribunal de Contas da União”
Valor: Além desses casos em telecomunicações, o que mais o TCU pretende mediar neste ano?
Dantas: Nós temos 14 propostas no setor rodoviário, das quais quatro já estão no TCU.
Valor: 14 contratos de concessão indo pra mediação só no setor rodoviário. Estava tudo errado no modelo econômico? É tudo culpa da pandemia ou houve falha de planejamento?
Dantas: Tem de tudo um pouco. Nós começamos a fazer concessão de rodovia pra valer no Brasil em 2010. Tivemos uma curva de aprendizado, 14 anos de aprendizado. Hoje já temos um catálogo muito grande do que não deu certo. Teve problema de projeção, de crescimento econômico que não se verificou. Então, as empresas foram muito agressivas e as concessões praticamente faliram.
Valor: O governo anunciou uma nova versão do PAC com muitos investimentos em concessões. As modelagens estão melhores ou corremos o risco de uma nova enxurrada de mediações do TCU no futuro?
Dantas: Em volume de recursos, essas otimizações contratuais envolvem até mais do que está no PAC para novas concessões. Então, no setor de telecomunicações estou falando de R$ 100 bilhões em disputa. Tem que ver quanto vai entrar nos cofres do Tesouro e quanto vai para investimento. No caso do setor rodoviário, estamos falando de mais R$ 110 bilhões em investimentos ao longo de 15 anos nesses 14 contratos.
Valor: Há também renegociações no setor de aeroportos, certo?
Dantas: Há um modelo interessante que o ministro Silvio Costa está propondo, que é pegar as primeiras concessões de aeroportos, que não seguiram o modelo “filé com osso” e, no momento do reequilíbrio do contrato desses aeroportos (Guarulhos, Viracopos, Brasília e Galeão), colocar o osso também. Reequilibra, mas coloca o osso, que é a administração e reforma de aeroportos regionais deficitários. Nós já estamos analisando a primeira proposta, que é a do Aeroporto de Guarulhos. O ministério já formalizou essa proposta, que está sendo examinada pelos nossos auditores. Estamos falando de investimento de R$ 3,5 bilhões com a inclusão de 71 aeroportos regionais em dez anos para o conjunto dessas quatro concessionárias que estão reequilibrando.
Valor: Há processos de mediação fora do setor de infraestrutura?
Dantas: É um processo um pouco “sui generis”. Um caso em que a fundação do fundo de pensão do BNDES (Fapes) foi condenada a devolver aos cofres públicos R$ 4 bilhões. Foram aportados R$ 4 bilhões dos cofres do BNDES no fundo de pensão e o TCU considerou irregular a operação. Diversos gestores foram condenados. Evidentemente, se o fundo de pensão tiver que devolver R$ 4 bilhões, ele quebra, e os servidores ficam sem aposentadoria. Ninguém deseja isso. Então, o próprio relator propôs uma mesa de negociação para definir como isso seria pago.
Valor: Estamos falando, então, de quase R$ 220 bilhões em processos na secretaria de mediação?
Dantas: Exatamente.
Valor: O senhor mencionou a importância do “selo” do TCU para dar segurança jurídica. Mas o tribunal mudou recentemente sua própria decisão sobre regras de devolução de recursos do BNDES ao Tesouro. Esse selo não estaria meio frouxo?
Dantas: Não. Neste caso do BNDES, o TCU condenou as operações, os aportes de dinheiro do Tesouro no BNDES sem lei. Essa é uma decisão que nunca mudou e que o TCU determinou a devolução do dinheiro. Só que o TCU, preocupado com a liquidez dos bancos públicos, por prudência, disse que isso deveria ser feito em comum acordo, entre o Ministério da Fazenda e os bancos, observando proporção que não descapitalize os bancos, prejudicando o índice de Basileia. No fim de 2022, o então ministro Paulo Guedes decidiu exigir o pagamento de tudo e pediu que o BNDES devolvesse tudo imediatamente. E os técnicos do BNDES disseram que não era possível fazer sem atingir o índice de Basileia. Então, o TCU disse para devolver no ritmo mais rápido sem afetar o índice de Basileia. Quando assume o governo novo, o governo tem outras prioridades e um plano de desembolso para o BNDES que é diferente do governo anterior. O que o TCU fez foi realinhar o volume de desembolsos ao tamanho do BNDES que governo eleito tem legitimidade para propor.
Valor: Mas essa decisão do TCU contrariou a avaliação dos auditores do próprio tribunal.
Dantas: Acho que há certo fetiche de alguns observadores em achar que existem instâncias hegemônicas. O processo decisório no TCU é altamente complexo, exatamente para dar chance de ser um processo decisório consciente e bem informado. O processo chega, vai para o Ministério Público e depois vai para o ministro relator. São cinco instâncias. Querer que todas convirjam sempre é impossível.
Valor: Por que o tribunal decidiu realizar sessões extraordinárias para processos do BNDES?
Dantas: Porque são processos muito complexos. Todos eles estão com o ministro Augusto Sherman, que mandou abrir tomadas de contas especiais contra dezenas, centenas, de servidores do BNDES. Isso, naturalmente, cria um tumulto processual. E os ministros decidiram examinar com cuidado porque aqui nós não aceitamos julgar a vida das pessoas de “baciada”. Os ministros sabem que uma condenação, muitas vezes, destrói a carreira de um servidor. Então, houve consenso no plenário e decidiram olhar com cuidado aqueles processos do período de 2012 a 2015.
Valor: Quando serão as sessões?
Dantas: Uma em fevereiro e outra em março.
Valor: O TCU mandou um aviso ao governo sobre a forma pela qual ele vinha perseguindo a meta fiscal. Como o tribunal vai atuar em 2024 sobre esse tema?
Dantas: O TCU não atua na base do voluntarismo, atua de acordo com a Lei. A Lei de Responsabilidade Fiscal e o novo arcabouço fiscal determinam que o TCU deve acompanhar os relatórios trimestrais de gestão fiscal. E isso nós já fazemos há algum tempo. Com base no novo arcabouço fiscal, temos a obrigação de fazer essas análises e ir expedindo determinações, recomendações e alertas ao governo federal daquilo que entendemos que pode representar um distanciamento das regras do arcabouço. Quem decide a meta do primário é o governo na LDO, mas, uma vez definida a meta, o TCU observa o fluxo de receitas e despesas e observa a gestão fiscal para ver se a meta está sendo perseguida com instrumentos que a Lei estabelece.
Valor: O tribunal se posicionou contra a mudança na LDO?
Dantas: Certa vez me perguntaram se o TCU era contra a emenda. Eu disse que não. Acho que essa emenda, ao limitar a possibilidade de contingenciamento, retira do governo um instrumento. No fundo, o que deve ser observado é a meta e os instrumentos que o governo tem. Que outros instrumentos o governo vai ter além do contingenciamento? Pode ser que tenha outros meios, até no próprio fluxo da execução orçamentária, porque quem executa o Orçamento são os ministérios. O presidente da República vetou o calendário de desembolsos de emendas parlamentares, que daria algo em torno de R$ 50 bilhões. Então, são instrumentos que o governo tem para dar ritmo à execução orçamentária e isso é prerrogativa do Poder Executivo, e o TCU não se imiscui em quais instrumentos devem ser manejados em qual momento. O que o TCU diz é: “Olha, se passaram três meses, o déficit está em X e se continuar nesse ritmo você não vai chegar na meta. Essa é uma atuação preventiva. O que nós fazemos realmente é a análise das contas do presidente da República. Em junho, o ministro Vital do Rêgo vai apresentar relatório sobre as contas do primeiro ano do presidente Lula. 2023 foi ano atípico, por conta da emenda constitucional que autorizou o governo a fazer gastos. 2024 será bem mais desafiador.
Valor: Por quê?
Dantas: Porque no ano passado o déficit foi pré-autorizado pelo Congresso. Neste ano, o ministro Fernando Haddad está perseguindo a meta de déficit zero e lançando mão de todos os instrumentos de que dispõe.
Valor: O senhor esteve novamente na lista dos favoritos para uma vaga de ministro do STF. Isso ainda está nos seus planos?
Dantas: Gosto de viver um dia de cada vez. Hoje ainda tenho 350 dias como presidente do TCU. É uma responsabilidade tremenda, é uma honra imensa presidir uma casa com 130 anos de funcionamento ininterrupto, sempre com previsão constitucional. O papel de controlador da ação governamental não me permite ações extravagantes e sempre tive muita consciência e muito respeito pela cadeira que ocupo. Nunca me coloquei como candidato ao que quer que fosse, vi o meu nome circular e, claro, isso significa reconhecimento. O certo é que não há qualquer vaga aberta, não há postulação que se possa fazer e eu estou muito feliz no Tribunal de Contas da União.
Fonte: Valor Econômico